quarta-feira, 16 de agosto de 2017

PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM

A incompreendida proibição do bis in idem na perspectiva americana


No presente momento, retornamos ao tema cuja discussão iniciamos em estudo anterior, acerca de caso no qual delegado de Polícia Civil fora condenado por ato de improbidade administrativa por ter se recusado a lavrar auto de prisão. Tratava-se de mulher flagrada intentando adentrar em estabelecimento prisional com pequena quantidade de droga, sem prova cabal de sua participação em organização criminosa e, ainda, mãe de criança de tenra idade. Em tal caso, procuramos demonstrar, por diversas perspectivas, que aludida condenação significava, antes de mais nada, tentativa de normalização de uma ideologia punitivista e violadora de direitos que se gesta no ambiente jurídico pátrio[1].
Ademais, além desta questão em específico, observa-se que, no caso em comento, referido delegado de polícia havia sido processado pelos mesmos fatos na seara criminal por suposta prática de prevaricação. No entanto, ele restou absolvido tanto em primeiro quanto em segundo grau de jurisdição. Mesmo assim, porém, o magistrado do caso, invocando o artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa[2] (LIA) — que dispõe sobre a independência de instância criminal e a cível sancionadora — entendeu que “nada obstante absolvido do crime de prevaricação, o réu pode[ria] responder por improbidade administrativa”[3].
Diante deste panorama, apesar da situação de cariz sociológico já abordada, resta uma análise a partir de uma perspectiva de violação do Pacto de San José a, de igual modo, tornar insubsistente referida situação.
Pois bem.
Inicialmente apontamos nosso entendimento pelo qual todas as normas nacionais — inclusive aquelas decorrentes do constituinte originário — devem se submeter às disposições de referido tratado internacional. Este, aliás, é o posicionamento pacífico da Corte Interamericana de Direitos Humanos[4] (Corte IDH). Por outro lado, prevalece, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que referido tratado possuiria natureza apenas “supralegal”[5].
Assim, ainda que tomemos a interpretação — a nosso ver equivocada — do STF e ainda que a Constituição preveja, em tese, a possibilidade de punição na seara de improbidade administrativa daquele criminalmente absolvido[6], toda normativa infraconstitucional que regule aludida situação resta esvaziada, impossibilitando a referida condenação nestes moldes. A respeito, conforme o próprio entendimento de nossa Corte Constitucional ao lidar com a prisão civil do depositário infiel, em que pese haver norma constitucional autorizativa[7], esta se mostrava de impossível aplicabilidade ante a invalidade do Código Civil e do Código de Processo Civil vigentes à época, por afrontarem disposição do Pacto de San José[8].
Neste sentido, sob qualquer prisma que se analise a questão, as disposições da LIA não podem afrontar aquilo trazido pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Esta, por sua vez, dispõe, em seu artigo 8.4[9], que o acusado não poderá ser processado mais de uma vez pelos mesmos fatos. Veda-se, portanto, a dupla punição sob uma perspectiva ampla, proibindo que o acusado seja sancionado/processado mais de uma vez em relação à mesma situação fática.
Este tema, registra-se, já foi analisado no âmbito da Corte IDH no caso Loayaza Tomayo vs. Peru. Em aludido julgado, o Tribunal Internacional entendeu que o Peru, ao absolver Loayaza Tomayo pelo crime de traição à pátria, não poderia tê-la condenado posteriormente pelo crime de terrorismo, uma vez que ambas as acusações se relacionavam aos mesmos fatos, e o dispositivo do tratado internacional em análise interditava qualquer possibilidade de nova condenação.
Aponta-se que a Corte IDH ressaltou que, diferentemente de outros diplomas internacionais — como Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos[10] e da Convenção Europeia de Direitos Humanos[11] —, a proteção americana é muito mais ampla[12]. Logo, impede-se que os estados signatários da convenção americana tomem novas medidas com viés sancionador contra qualquer pessoa que tenha sido anteriormente processada em relação aos mesmos fatos.
Assim, em que pese respeitável entendimento neste sentido[13], não impressiona sequer o argumento de que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já admitiu ser compatível com a normativa europeia de Direitos Humanos a dupla punição na seara administrativa e criminal de sonegador de imposto em território norueguês[14].
A corroborar nosso entendimento, o próprio Tribunal Europeu de Direitos Humanos no caso Sergey Zolotukhin vs. Russia, analisando tanto o alcance do Pacto de San José, quanto de seu congênere europeu, ressaltou a amplitude do primeiro, afirmando que:
Uma análise dos instrumentos internacionais que preveem o princípio do no bis in idem revela uma variedade de termos pelos quais ele é expressado. Assim, o art. 4 do Protocolo 7 da Convenção [Europeia de Direitos Humanos], o art. 14.7 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do art. 50 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia referem-se à “mesma infração”, já a Convenção Americana de Direitos Humanos fala de “mesmos fatos” […]. A diferença entra os termos […] “mesmos fatos” de um lado, e do termo “mesma infração” de outro, foi analisada pela Corte de Justiça da União Europeia e pela Corte IDH. Entendeu-se que a diferença de termos era um importante elemento em prol da adoção de uma abordagem baseada estritamente na identidade de fatos materiais, tornando a classificação legal de tais irrelevante. Com tal conclusão, as duas cortes entenderam que esta abordagem favorecia o indivíduo, o qual teria a certeza que, uma vez condenado, cumprido sua punição, ou absolvido, ele não teria mais que temer nenhum novo processo pelos mesmos fatos.15
Resta claro que ao submeter indivíduo já processado na seara criminal — tendo sido este condenado, cumprido pena ou absolvido — à nova ação sancionadora resta violada garantia americana que proíbe aos Estados reiteradamente processar os indivíduos sob sua jurisdição pelos mesmos fatos. Isto se dá principalmente se considerarmos que, em nosso ordenamento jurídico, uma condenação por improbidade administrativa pode significar um prejuízo individual ainda mais intenso que a própria reprimenda criminal como, por exemplo: o pagamento de altas multas; a impossibilidade de contratação com a Administração Pública; a suspensão de direitos políticos; ou, até mesmo, perda de cargo ou função pública.
Finalmente, lembramos que o mesmo STF que entende ser possível a dupla punição, tanto na seara da improbidade administrativa quanto no âmbito penal, igualmente reconhece o nítido conteúdo sancionador das punições previstas na LIA[16]. Por outro lado, como já dito, tal interpretação, se, em tese, compatível com nossa Constituição, mostra-se afrontosa ao Pacto de San Jose. Por isso, resta inválida a disposição constitucional que autoriza a punição por improbidade administrativa “sem prejuízo da ação penal cabível”[17], ou, caso se adote a equivocada interpretação do caráter “supralegal” do Pacto de San José, ao menos haverá o esvaziamento do artigo 12 da LIA ou de outros dispositivos infralegais que permitiriam este duplo sancionamento[18].
Conclui-se, portanto, e por qualquer perspectiva, que no caso aqui analisado, ademais da clara patrulha ideológica que representa, a condenação do delegado de polícia aos moldes narrados significa clara violação à Convenção Interamericana de Direitos Humanos. http://www.conjur.com.br/2017-ago-15/tribuna-defensoria-incompreendida-proibicao-bis-in-idem-perspectiva-americana

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