quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Os juizados criminais e a filosofia comunicativa.

 juizados criminais e a filosofia comunicativa. www.ambito Jurídico.com.br

Os juizados criminais e a filosofia comunicativa.

Uma abordagem crítica 
por Claudia Aguiar Britto

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Resumo: O presente artigo tem por objetivo apresentar algumas reflexões críticas a respeito dos vinte e um anos da criação dos juizados especiais criminais. Com essa perspectiva, analisamos a então proposta legislativa de se buscar um processo mais simples, ágil, de acesso fácil e direto; porém, em contraponto à realidade prática do procedimento especial criminal.  Assim, como referencial teórico, utilizamos uma abordagem filosófica e algumas reflexões a partir do agir comunicacional habermasiano.
Palavras-chave: juizados criminais - atos de fala  -  Agir comunicativo.
Abstract: The present article is aimed at presenting some critical reflections on the twentieth anniversary of the creation of special criminal courts. With this perspective, we analyze the legislative proposal to seek a simpler process, agile, easy and direct access; however, in contrast the practical reality of the criminal procedure. As a theorical referential we made use of a philosofical approach and some reflexions based on the Habermasian communicative action.
Keywords:  criminal courts - speech acts- communicative action
Sumário.     1. Introdução. 2. A filosofia do Agir comunicativo no âmbito do Jecrim. 3. A fragilidade do sistema de justiça criminal no Brasil. 4. O modelo de “barganha penal”. 5. Perspectivas para uma Justiça Restaurativa. 6. Conclusão. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
Comemorar-se-á no dia 26 de setembro de 2016, o surgimento da Lei 9.099/95 - que instituiu os juizados especiais e ofereceu, sobretudo para a justiça penal, mecanismos dissuasórios de resolução da controvérsia (tais como a composição de danos civis, a transação penal e a suspensão condicional do processo)
 Contudo, algumas inquietações ainda possibilitam argumentações no plano prático. Pode-se dizer que essa “desformalização” do processo e das controvérsias a partir da solução consensual é relativamente recente na seara penal brasileira. Enquanto a primeira vertente representou a ideia de buscar um processo mais simples, ágil, de acesso fácil e direto, a outra pretendeu alçar instrumentos capazes de evitar o processo, mediante mecanismos institucionalizados de mediação.
Lembra Scarance[i] que a Lei 9.099/95 representou uma verdadeira revolução no sistema brasileiro, libertando a justiça para o consenso em matéria penal, mas que, à época, fortes resistências foram empreendidas na área criminal com vistas a impedir qualquer abertura no sentido de disponibilidade da ação e do processo, porque “percebeu-se que o Estado, a partir dos estudos criminológicos, não tinha condições de, com eficácia, dar vazão à intensa demanda da criminalidade”.
A proposta trouxe também a ideia de uma forma alternativa pela via procedimental, isto é, uma fase pré-processual de natureza conciliadora, na qual deveria ser tentado um acordo (composição dos danos civis). Primeiro, entre o suposto autor do fato e a vítima (dependendo da qualificação jurídica). Numa segunda via, por meio da transação penal, estimulava-se a negociação entre o MP e o suspeito da prática delitiva, a fim de evitar o processo criminal. Supostos agentes praticantes de infrações menos graves poderiam receber uma medida despenalizadora proposta pelo MP e homologada pelo juiz, que, depois de cumprida pelo suspeito, extinguiria a sua punibilidade. Quando aceita pelo autor do fato, a transação implicaria na submissão a uma das penas alternativas previstas no art. 43 e seguintes do Código Penal. Outro mecanismo com vistas a afastar o processo criminal viria através do sursis processual (cujos moldes foram abarcados, em boa medida, a partir do modelo do sursis penal, constante no art. 77  do Código Penal).
Nesses quase vinte e um anos de existência da Lei, muitos comemoram. Afinal, dela resultou uma enormidade de resoluções de controvérsia, por meio de medidas despenalizadoras, afastando o pretenso autor do fato de sanções mais duras. Outros, porém, se juntaram ao exército daqueles soldados que, desde o início se opuseram, com veemência, ao mecanismo do Jecrim.
 Vários são os argumentos contrários ao modelo de justiça consensual, sobretudo porque pesa sobre ele a ofensa aos direitos humanos, principalmente aqueles relacionados aos direitos fundamentais. A repulsa ao mecanismo do consenso está muito mais ligada ao plano das garantias processuais, especialmente no que se refere à transação penal porque, através da possibilidade do acordo entre as partes, se acena com a perspectiva de que o réu venha a se conformar com a acusação em troca de sua renúncia ao direito de exercer plenamente as garantias advindas da cláusula fundamental do devido processo legal. Segundo esse pensamento, a “chantagem” ao réu surge nas ameaças a um tratamento mais rigoroso, de uma pena mais severa, do risco de um cálculo errado, para todo aquele que se negue a negociar[ii]
Evidentemente que toda essa roupagem oferecida pela citada lei realmente não poderia surtir - como não surtiu - o efeito desejado. A começar pelo fato de que, ainda que se quisesse dar celeridade às causas relativas às infrações menos graves, seria necessário, dentro de um ambiente democrático, que os envolvidos fossem instados a falar, que pudessem ser ouvidos. Haveria como há de haver espaço para que, através do diálogo, os participantes manifestem suas disposições.[iii]
II. A filosofia do agir comunicativo no âmbito do JECRIM

Mas o que significa pensar e agir, a partir da filosofia comunicacional de Habermas?  A racionalidade comunicativa sustentada pelo filósofo está basicamente focada no conceito de se “alcançar entendimento”; e para obtê-lo, os atores devem reconhecer intersubjetivamente as pretensões de validade propostas nos atos de fala. .  Alcançar um entendimento é um conceito normativo que supõe não coercitividade[iv].
Segundo o filósofo, para a obtenção do consenso sobre algo, as pretensões de validade do agir comunicativo devem estar presentes na relação intersubjetiva, porque todo consenso depende de um reconhecimento intersubjetivo de pretensões universais.  Inicialmente é necessário dizer que o consenso é compreendido de duas maneiras: por meio do chamado “consenso fático” (quotidianeidade) e do “consenso fundado” (racionalidade dos argumentos).  O consenso fundado está baseado em quatro pilares: a inteligibilidade, a verdade, a correção e a sinceridade.   Assim, é imprescindível uma linguagem acessível, clara. Por outro lado, o conteúdo que se deseja transmitir deve ser verossímil. As intenções propostas também devem permear-se de sinceridade. Por fim, a manifestação do falante deve ser correta e adequada dentro das regras e valores vigentes. Então, esse processo pelo qual se pode chegar a um entendimento se estabelece segundo as quatro fases descritas. A intersubjetividade é gerada exatamente no uso da linguagem comum, fruto do resultado de uma interação entre sujeitos capazes de falar e agir, e que se comunicam com o fito de se entenderem.   
Endereçando estas reflexões para o campo do processo penal, compreendemos que o Juiz e as partes devem tornar compreensível o sentido da fala na esfera da relação processual (inteligibilidade), devem reconhecer a verdade do enunciado oferecido através do ato de fala (veracidade). Também se postula que os interlocutores devem reconhecer a correção da norma (norma penal e constitucional) que, por meio do ato de fala, foi tida como cumprida. Alia-se às três classes acima, a quarta e última pretensão, ou seja, quando a sinceridade dos entes envolvidos não tiver sido posta em discussão. Trata-se da necessidade de buscar intersubjetivamente as manifestações dos participantes a partir de suas pretensões de validade. Os atores processuais devem ser capazes de orientar suas ações segundo pretensões de validade intersubjetivamente reconhecidas: a inteligibilidade, a verdade, a correção e a sinceridade[v].
Neste sentido, há que se dizer que  são as pretensões de validade, nada mais nada menos, que os fios condutores que irão ligar o motor dessa máquina linguístico-comunicacional que se aspira para o processo penal, sobretudo para os juizados criminais.
 Firma-se, com essa ideia, a necessidade de dotar os participantes de competência argumentativa – circunstância indissociável ao processo comunicacional. Sem esse nivelamento de habilidade de debate entre os envolvidos e o espaço suficiente à fala, o consenso não acontece. Justiça consensual, sem a busca efetiva de um entendimento, permeado pelas pretensões de base, não pode ser compreendida como justiça do consenso.
III. A fragilidade do sistema de justiça consensual no Brasil
Trabalhando com as perspectivas oferecidas no âmbito do Jecrim, é possível, à primeira vista, dizer que a chamada justiça consensual é, em tese, profilática; porém, na prática, pode ser bem traiçoeira, por diferentes motivos. Primeiro, e especialmente, por força da própria engrenagem do sistema legal, que permite, automaticamente, a remessa de peças da polícia para a justiça criminal sem que ninguém, em regra, possa frear isso. Em segundo plano, ademais, porque as formas “coativas” empregadas em face do autor do fato para que aceite a proposta de transação penal, não como escopo para pôr fim ao litígio e para a busca do consenso, mas baseado em estatísticas de “produtividade” e redução do espaço/custo financeiro de trabalho, constituem fenômenos corriqueiros, contrários à lógica do direito.
Esses dois pontos já seriam suficientes para demonstrar que o modelo de justiça consensual no Brasil é muito frágil. Frágil porque os profissionais envolvidos também não estão preparados para exercê-lo de forma convincente. A prática demonstra que, na maioria dos casos, as demandas são deixadas a cargo de conciliadores leigos, que parecem ser doutrinados a tentar a composição de danos e até mesmo a transação penal a qualquer custo. E quando não conseguem êxito, o órgão ministerial, que deveria intervir com maior responsabilidade, nem sempre assim o faz. Em geral, as partes que mais veementemente recusam o acordo acabam se tornando antipatizadas para a acusação.
Em termos de trâmite judicial, a baixa ofensividade dos delitos dessa competência pode ser refletida no animusjudicante e ministerial. Às vezes, a investigação para tais infrações, no que diz respeito ao onus probandi, por parte do órgão acusador, é tratada como mera circunstância. Assim, em nome do princípio da celeridade, aviltam-se direitos e a democracia perde espaço. Em outra vertente, embora a lei proponha o acordo entre os envolvidos, com a aceitação da medida despenalizadora pelo suposto autor do fato, essa resposta penal representa nada mais nada menos que uma indisfarçável, e muitas vezes indigesta, sanção penal. Embora se afirme que a aceitação das propostas não macula a “fac” (folha de antecedentes criminais) do aceitante para efeito de reincidência, fato é que o sujeito deverá cumprir uma das penalidades previstas no CP estipuladas pelo MP e homologada pelo juiz. O registro da aceitação da proposta, todavia, permanecerá para efeito de concessão ou não de novo benefício dessa natureza.
Por outro lado, não se observa, nesses juizados, o espaço e o tempo necessários para que o diálogo ocorra numa relação intersubjetiva em que os participantes reconheçam suas pretensões de validade. O princípio da celeridade (que norteia a estrutura dos juizados especiais) parece ser tão levado a sério - em sentido negativo -, que o que menos se vê nesse ambiente é o diálogo. Procedimentos são iniciados e terminados tão rapidamente que, na maioria das vezes, não se permite, nem mesmo, colocar em prática a própria oralidade (segundo princípio norteador dos Jecrim’s). É comum o uso de fórmulas prontas para as assentadas conciliatórias e termos padronizados de transação penal. No entanto, as estatísticas oficiais apontam, aparentemente, para exitosos e justos consensos. Mas consenso sem diálogo não é consenso. Justiça consensual sem diálogo não é justiça; trata-se apenas de um arremedo de Justiça. Um insólito retoricismo, se pudesse aqui exprimir o manuseio da expressão consensual nas cercanias da justiça.
A experiência dos juizados especiais criminais revela que o problema do acesso à justiça estatal não está resolvido. Para Ghiringhelli de Azevedo[vi], esse acesso depende mais da iniciativa administrativa dos setores que gerenciam o sistema do que de uma nova disposição legal; e resolver essa questão exige gastos, pontua o autor. De fato, a informalidade da justiça penal ainda não conseguiu desburocratizar-se, desapegar-se dessa estrutura cartorária, hermética, muitas vezes confusa e paradoxal.  Essa disposição administrativa e financeira, contudo, representa apenas uma pequena parte do problema em torno da justiça consensual. Para pôr em ordem os desalinhados procedimentais deve haver um esforço cooperativo ao diálogo das pessoas envolvidas.
O problema não está cingido apenas ao réu e à administração pública, que não dispõe de recursos financeiros para arcar com as demandas. O fato relaciona-se muito mais com a disposição e o compromisso dos atores processuais, com a abertura dialogal, do que propriamente com aquelas ligadas ao fomento financeiro.
 Outro dado importante nesse contexto é o que se refere à busca da verdade processual. Se, para alguns, o processo penal não favorece o descobrimento da verdade nos moldes formulados e empregados, na dura realidade forense dos juizados criminais, a verdade está longe, muito longe de se fazer enxergar.
Nessa esteira, uma análise da atuação dos Jecrim’s nesses quase vinte e um anos do surgimento da Lei 9.099 atesta que imaginar que as partes, ao dialogarem, diriam a verdade, promoveriam uma exata reconstrução dos fatos e reconheceriam suas responsabilidades, é negar uma realidade que salta aos olhos. A questão do acordo, da transação penal e até mesmo do sursis processual penal, se posta à luz da consensualidade, revelará que os participantes, ao tentarem ingressar num debate argumentativo, não conseguem ficar em pé de igualdade com os atores públicos do Estado, mantendo um nivelamento igualitário e suficientemente capaz de habilitá-los para um possível consenso.
IV. O Modelo de “barganha penal” (plea bargaining e guilty plea )
Em termos comparativos, o modelo de acordos e mediações na justiça criminal estadunidense é uma boa fonte de reflexões. A razão primária para a prevalência da negociação entre as partes é a eficiência e o controle administrativo[vii].  Muitos juízes e procuradores têm argumentado que um decréscimo substancial em acordos criaria um caos no sistema de justiça. Eles acreditam que a negociação é a sustentação essencial para a existência contínua de um sistema de justiça organizada. No modelo estadunidense, os mecanismos de solução de controvérsia do chamado sistema de “barganha penal” (plea bargaining e guilty plea) encontram adeptos e opositores.
Os defensores da negociação penal argumentam que o guilty plea (by pleading guilty the defendent):
1. assegura uma pronta e certa aplicação das medidas adequadas;
2. evita atraso na prestação jurisdicional e aumenta a probabilidade da pronta e certa aplicação de medidas corretivas aos acusados;
3. o acusado, reconhecendo a sua culpa, manifesta o desejo de aceitar a responsabilidade pela conduta;
4. evita ser submetido a um julgamento público, quando as consequências têm mais valor do que qualquer necessidade legítima para tal;
5. impede um excessivo dano ao defendente, a partir da forma convincente de condenação;
6. possibilita certas concessões quando o réu oferece cooperação na busca de outros elementos.
Por outro lado, os que se opõem à negociação pelo sistema guilty plea baseiam-se no fato de que existe um perigo real de pessoas inocentes serem condenadas. A crítica também se estende às diferenças de tratamento observadas nas sentenças (de negociação e julgamento). Tem sido alegado, por exemplo, que juízes induzem negociações impondo sentenças mais severas quando o réu escolhe o julgamento ao invés da negociação[viii].
Por outro lado, procuradores, ao barganhar, somente intencionam promover o andamento dos feitos e, por essa visão, barganhar é distribuir irregularmente e de forma desigual entre os envolvidos a habilidade para se conseguir, de forma leniente, um acordo. Assim, segundo H. Miller et al., barganhar remete a um mecanismo ineficiente e inútil, além do quê, aqueles que optam por um julgamento, isto é, que não aceitam submeter-se a acordos, acabam geralmente recebendo penas mais longas.
No caso de negociação por meio do plea bargaining, alguns compreendem que tal mecanismo é desastroso e deveria ser abolido porque, dentre outras coisas,  um  réu inocente a injusta e a inadmissível escolha de negociar sua condição jurídica para evitar um julgamento. Em linhas gerais, argumenta-se que a condenação, punição e litígio são produtos públicos com efeitos sociais poderosos, ao passo que os mecanismos em prol da negociação entre as partes (no estilo contratual) afastam a ingerência do Estado, ao mesmo tempo em que introduzem um aumento de custos às agências responsáveis pelos processos de negociação.
Para Schulhofer[ix], o acordo não irá melhorar o bem-estar das partes afetadas numa negociação. O réu inocente, diante de uma pequena possibilidade de condenação, poderia se interessar em aceitar uma condenação com uma pequena pena. Porém, a escolha do réu pela negociação pode ser racional através de sua própria perspectiva, mas isso impõe custos à sociedade, minando a confiança pública porque, se por um lado as condenações criminais transmitem uma mensagem de que o acusado é culpado, por outro, mantém íntegra uma dúvida razoável quanto à sua verdadeira culpabilidade.
No que concerne à mediação[x], desde 1984 ela é empregada na França e se desenvolve atualmente em larga escala. A palavra mediação remonta há séculos, algo em torno de 5.000 anos, e significava, inicialmente, segundo Morineau[xi], a ideia de se perpetuar o liame entre a divindade e os seres mortais, a conexão entre Deus e os homens (le lien à rétablir entre Dieu et les hommes). A história de toda a civilização é resultado da procura constante de se construir os fundamentos de um equilíbrio que dependa do próprio homem.  Por esse raciocínio, a mediação significa, portanto, o espaço oferecido para se estabelecer uma conexão entre aquele que clama por auxílio e o auxílio para aquele que precisa de proteção.
Com o exemplo do modelo consensual instituído em 1995 através da Lei 9.099 pareceu, à primeira vista, que seria possível desenhar um discurso prático mais eficiente. Todavia, os princípios fundamentais iniciais que vestiriam a então novata lei – da oportunidade regrada, da autonomia da vontade e da desnecessidade da pena de prisão (MOLINA, 2002, p. 60) – não foram suficientes para conduzir um procedimento que aparentemente serviria para pôr em prática o consenso e a mediação.
Em verdade, não seria ingenuidade pensar que a própria engrenagem do sistema legal pudesse permitir, automaticamente, a remessa de peças da polícia para a justiça criminal? Seria possível imaginar que, instantaneamente, de um dia para o outro, o cidadão comum (inscrito num registro de ocorrência) vem a tornar-se autor do fato e ter seu nome estampado nos registros judiciais? Não seria também um tanto ingênuo não supor que muitos desses registros – ainda – são confeccionados ao apagar das luzes das delegacias policiais, produzidos com fins estratégicos, além de utilizados, em significativa parcela, com o objetivo de angariar troca de favores nada lícitos (ameaças) ou mesmo para servirem de (re)negociações de dívidas escusas ligadas a fins econômicos? Da mesma forma, não seria ingenuidade pensar que as diferenças de forças no campo processual, agora entre as pessoas envolvidas diretamente no conflito, fossem realmente ajustadas ou supridas pelos conciliadores? A simples tramitação do procedimento penal inaugura não somente um irreparável constrangimento imposto ao suposto autor de uma infração diminuta, mas sobretudo, e potencialmente, o risco de uma futura restrição de direitos[1]. A realidade mostra que mediadores/conciliadores, muitas vezes, não só não dispõem de capacidade para a condução de um diálogo fundado, mas, sobretudo, não estão devidamente capacitados para compreender as disparidades encontradas, em boa medida, entre as partes envolvidas.
Por outro lado, como já ressaltado em linhas anteriores, as formas coativas empregadas em face do autor do fato para que aceite a proposta de transação penal, não como objetivo central à busca do consenso, mas baseado em estatísticas de produtividade e redução do espaço/custo financeiro de trabalho, também é observável na práxis cotidiana. Com efeito, a proposta de transação, quando aceita nessas condições, representa um consenso ingênuo, pois não foi submetido a um assentimento racional. Um dos envolvidos (no caso, o autor do fato) acaba concordando com a proposta transacional sem a devida e exata compreensão do que efetivamente acordou com o MP e com a Justiça.
V. Perspectivas para uma Justiça Restaurativa
Nessa linha, a então novata (pelo menos em solo brasileiro) Justiça Restaurativa com gritos de repúdio ao processo punitivo de viés opressivo, propugnando a via da resolução de problemas de forma colaborativa. Abordagens e práticas restaurativas proporcionariam, segundo idealizações, a oportunidade de a vítima e o infrator manifestarem seus sentimentos, expressarem-se, descreverem como foram atingidos e dizerem de que maneira o conflito poderia ser apaziguado e solucionado. Afastando a figura pesada e secular do Estado e seus representantes e transferindo o diálogo (entre vítima e infrator) para os grupos mais próximos à comunidade a que pertencem (ONG´s, associações comunitárias, de classe, centros universitários etc.), trabalha-se com a ideia de um sistema menos opressivo. Planos para reparar os danos sofridos ou o trabalho integrativo e interativo fincado e desenvolvido com vistas a evitar novos estorvos são sugestões bem alimentadas pela justiça restaurativa. Porém, ainda que nobre, a proposta, especialmente pela condição de deixar a figura do Estado sombreada, à margem do episódio conflitivo, enquanto os próprios envolvidos diretos resolvem suas pendências, corre o risco de ser mal sucedida; porque há de haver nisso tudo mecanismos cognitivos realmente satisfatórios e exequíveis. Não se chega a um entendimento sem que todos os participantes do diálogo possuam, de fato, o mesmo nível de conhecimento, de compreensão daquilo que se coloca à mesa do debate.
VI. Conclusão
Para concluir e retomando a perspectiva brasileira, considerando o entendimento como um processo que abrange uma série de atos de fala, poder-se-ia dizer que o ato de fala de um participante somente teria sucesso se o outro participante aceitasse a oferta contida nesse ato manifestando “sim” ou “não” à proposta do MP, apoiada em pretensões de validade.
Para que seja possível atender ao que dispõe o edifício comunicativo vislumbrado para a esfera do Jecrim, será necessário um verdadeiro esforço cooperativo dos participantes do diálogo: um novo pensar, agir e falar.  Quando os participantes pretenderem um acordo motivado racionalmente e entenderem que ele poderá ser alcançado, pelo menos a princípio haverá o espaço para o discurso e, consequentemente, para o alcance do consenso.
Contudo, o modelo de justiça consensual do Brasil que ainda se observa na prática cotidiana, como dito alhures, está longe de seguir o padrão comunicativo. Nele não há espaço para o consenso, porque não há espaço para o diálogo. Por outro lado, se há quem alegue que a verdade processual poderia ser extraída por meio do contraditório efetivo, tendo as partes reais condições de exporem seus argumentos e contra-argumentos, no formato Jecrim, essa proposta se esvai.
otas:
[1]     Veja-se a crítica de Morais da Rosa. (Guia Compacto do Processo Penal segundo a teoria dos jogos.  2013, p. 75), para quem os Juizados Especiais, embora equipados com “para-juízes”, não respondem a um mínimo de garantias a que o sujeito processado faz jus, democraticamente. Nessa linha contra os JECRIM’s, por todos: Miranda Coutinho (2005, p., 03-14). Recomenda-se leitura nesse contexto:
CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Teses e Antíteses sobre os processos de Informalização e privatização da Justiça Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Novos diálogos sobre os juizados especiais criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
[i]  SCARANCE, Antônio Fernandes Processo penal constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
[ii]  KARAM, Maria Lucia. Juizados especiais criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[iii] AGUIAR BRITTO. Processo penal comunicativo. Comunicação processual à luz da filosofia de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá. 2014. Artigo baseado no livro da autora e adaptado exclusivamente para fins acadêmicos.
[iv] HABERMAS, J. Agir comunicativo. v. I e II. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: Martins Fontes, 2012, v.1.
[v] AGUIAR BRITTO. Processo penal comunicativo. Comunicação processual à luz da filosofia de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá. 2014.
[vi]GhIringhelli de Azevedo. Conciliar ou punir? Dilemas do controle penal na época contemporânea. In:Diálogos sobre a justiça dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. pp. 55-79.
[vii] MILLER, H. McDONALD, W. CREMER, J. Plea bargaining
 in the United States (1978). In: guilty pleas and bargaining. Chapter nine. American criminal Procedure, cases and commentary. Fifth edition. Stephen A. Saltzburg, Daniel J. Capra, West Punishing Co, 1996, St Paul. Em tradução livre da autora.
[ix]  SCHULHOFER. 101, Yale L. J. 1979 (1992), (op. Cit.) p. 819. In Guilty pleas and Bargaining. AMERICAN CRIMINAL PROCEDURE. Cases and commentary. fifith edition. Stephen A. Salztburg. Daniel J. Capra. St PualkMinn: West Publishing Co. 1996. Em tradução livre da autora
[x] Cf. Prado (2002, p. 89): A mediação comporta a intervenção de um mediador – um árbitro – absolutamente desinteressado do resultado material do acerto entre as partes, mediador que se dispõe a intervir unicamente para tentar fazer com que as partes resolvam de forma consensual o dilema que as contrapõe. Justiça penal consensual. In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de (Org.) Diálogos sobre a justiça dialogal: teses e antíteses sobre os processos de informatização e privatização da justiça penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. pp. 81-97.
[xi] MORINEAU, Jacqueline. Des origines de la médiation “humaniste”. In: Sociologia del diritto n. 3, v. 34. pp. 165-174, 2007. Por livre tradução da autora.

PRISÃO E LIBERDADE. FURTO DE FUZIS. EXERCITO

http://www.conjur.com.br/2016-set-28/stf-mantem-prisao-soldado-acusado-furto-fuzis-exercito

QUEBRA DE HIERARQUIA

Supremo mantém prisão de soldado acusado de furto de fuzis do Exército


Por entender que a prisão preventiva de um soldado acusado de furtar dois fuzis do Exército tem justa motivação, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal negou o Habeas Corpus 135.047, no qual a Defensoria Pública da União buscava a revogação da detenção.




Na sessão dessa terça-feira (27/9), o colegiado entendeu que a prisão se justifica em razão da gravidade do crime, da conveniência da instrução penal e para a manutenção da hierarquia e disciplina militares.
O soldado, integrante do 6º Batalhão de Infantaria da Selva, sediado em Guajará-Mirim (RO), foi preso em flagrante com os fuzis. Em depoimento, confessou o furto e afirmou que percorreu uma trilha na selva para ingressar no acampamento militar, rasgou uma tenda onde dormiam recrutas, e de lá subtraiu as armas.
O juiz auditor converteu a prisão em flagrante em preventiva ressaltando a gravidade da conduta e o fato de que a região, na fronteira com a Bolívia, é conhecida rota de tráfico de drogas e armas. O Superior Tribunal Militar também negou o pedido de revogação da prisão ou sua substituição por medidas cautelares.
O relator do HC 135.047, ministro Gilmar Mendes, observou que o decreto de prisão foi devidamente fundamentado, e que a conduta descrita nos autos revelou o desrespeito do agente para com a hierarquia e a disciplina militares, além de representar risco à segurança do quartel.
Salientou que a concessão de menagem (instituto previsto no Código de Processo Penal Militar que se assemelha à liberdade provisória) é incabível no caso, pois a narrativa demonstra a gravidade do delito, a indispensabilidade da segregação cautelar para a conclusão do inquérito e a necessidade de manutenção da hierarquia e disciplina militares.
Justa causa
Também por unanimidade, os ministros indeferiram o HC 135.674, impetrado pela DPU contra acórdão do Superior Tribunal Militar que recebeu denúncia contra um soldado do 14º Batalhão Logístico, em Recife, pelo furto do celular de um colega.
Em primeira instância, a juíza auditora rejeitou a denúncia entendendo não haver justa causa para abertura de ação penal, uma vez que o tempo decorrido entre o furto e a devolução do celular foi exíguo. Como o objeto nem saiu do quartel, não houve ofensa ao bem jurídico tutelado, avaliou a julgadora.
Após recurso do Ministério Público Militar, o STM recebeu a denúncia por entender que há suporte probatório para a continuidade do processo. A DPU então pediu no Supremo o reconhecimento da atipicidade da conduta. Os defensores públicos também requereram a aplicação ao caso do princípio de insignificância, diante da ausência de prejuízo ao patrimônio do ofendido.
Em seu voto, o relator do HC, ministro Ricardo Lewandowski, destacou que o furto dentro de um estabelecimento militar é altamente reprovável, e deve receber persecução penal adequada. “Quando se trata de crimes dessa natureza, envolvendo militares, esta corte tem sido mais rigorosa do que em casos semelhantes envolvendo civis”, afirmou o ministro. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.

REFORMATIO IN PEJUS JÚRI

http://www.conjur.com.br/2016-set-28/juri-nao-agravar-pena-estabelecida-antes-fachin

REFORMATIO IN PEJUS

Novo júri não pode agravar pena estabelecida no primeiro, decide Fachin

Decisão tomada por segundo júri, feito por determinação judicial, não pode piorar a situação do réu que já havia sido condenado em outro Tribunal do Júri. Por isso, o ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, determinou que um condenado por homicídio sofra só as penas impostas a ele pelo primeiro julgamento, que não havia considerado o crime hediondo.
O réu havia sido condenado em dezembro de 2011 a 11 anos e oito meses de prisão por homicídio privilegiado-qualificado: incidiram na pena dele, ao mesmo tempo, os parágrafos 1º e 2º, inciso IV, do artigo 121 do Código Penal. O primeiro dispositivo atenua a pena caso o homicídio seja cometido “impelido por motivo de relevante valor social ou moral”. O último, aumenta a pena se o crime for cometido de forma que impossibilite a defesa da vítima.
Diante da condenação, somente a defesa recorreu, e pediu novo júri, o que aconteceu em 2013. Mas no novo julgamento, os jurados levaram em conta apenas a qualificadora e relevaram a atenuante, aumentando a pena do réu.
A defesa, então, foi ao Tribunal de Justiça de São Paulo alegar a inconstitucionalidade da segunda condenação, já que recurso da defesa não pode resultar em decisão pior ao réu – é a vedação ao chamadoreformatio in pejus, ou reforma em prejuízo do réu.
 A apelação foi parcialmente acolhida para restabelecer a pena do primeiro julgamento, mas não foi restabelecida a classificação do crime como qualificado-privilegiado, o que, em razão da hediondez, acarreta efeitos gravosos no âmbito da execução penal, como na progressão de regime.
Foi, então, impetrado Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça, que o rejeitou por entender que nem a sentença e nem o acórdão do TJ trataram de progressão de regime.
No Supremo, o ministro Fachin explicou que a pena não é o único elemento da condenação que pode resultar em situações desfavoráveis à vida do réu. Questões laterais, como prazos para progressão de regime, também podem resultar em reformatio in pejus, proibido pelo artigo 617 do Código de Processo Penal, escreveu o ministro.
Para os crimes comuns, a progressão para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, pode ocorrer quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior. Já nos crimes hediondos, a progressão de regime pode ser concedida após o cumprimento de 2/5 da pena, se o apenado for primário, e de três quintos, se reincidente.
Fachin, então, afirmou que , no caso dos autos, é irrelevante o fato de que a progressão de regime não tenha sido tratada na sentença ou no acórdão de apelação, pois os requisitos para a concessão de benefícios na execução da pena estão expressamente previstos em lei. Com informações da assessoria de imprensa do STF.